Xadrez. Como aprendi este jogo


Neste trabalho vou contar como fui apresentado ao mágico jogo de xadrez, e o desenvolvimento da atividade enxadrística em minha vida de estudante.
Era uma tarde quente, quando a gente acabava com a nossa primeira jornada da escola, e voltávamos caminhando para casa. A escola católica junto à Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, que se chamava Colégio Estadual Padre João Piamarta, situado no bairro do Montese, lá os padres e mestres sempre nos recebiam todas as manhãs com seus rituais educacionais, mas ao meio dia éramos liberados para voltar para nosso lar. Eram uns vinte quarteirões, que variavam dependendo do caminho que a gente seguia, este trajeto era de aproximadamente dois quilômetros e meio até nossa casa. Caminho este que cobríamos entre brincadeiras e conversas. E sobre a volta para casa naquele dia quente, como são quase todos os dias no Estado do Ceará, quando está no período de seca, pense! É de matar. Apesar do sol quente na pele as casas tinham um colorido reluzente sob um céu azul. Lembro que costumava comentar com meu irmão, que luminosidade. Tem coisa do tempo de criança que a gente nunca esquece.




Figura 1 – Locais que marcaram o caminho entre a Escola e minha casa em Fortaleza-CE (1).

E falando daqueles dias. A volta parecia comum, qualquer como sempre, andando em bandos descendo a rua, ia deixando os colegas pelo caminho, e no final ficavam somente os irmãos, isto é, meus dois irmãos que cumpriam comigo estas caminhadas diárias de tanta saudade, e de tanto aprendizado. Contudo, nestes dias de final de período, era final de ano talvez lá por novembro. Não lembro bem, seria de 1972 ou 1973. Ao dobrar a esquina de nossa pequena rua, chamada Rua Costa Sousa que na época era uma rua de calçamento formada de pedras granito. No início da pequena rua bem na esquina havia um terreno baldio, que recebia lixo quase sempre, do outro lado ficava a pracinha “Ceará Sporting Club” defronte ao Estádio Presidente Vargas, vulgo PV, no bairro de Benfica em Fortaleza-CE. A gente vinha da escola pela via à direita da foto (linha azul), apresentada na figura 1.
O Estádio de futebol limita com seu grande muro quase todo o lado da rua Costa Sousa, acompanhado por uma calçada estreita e plana. E do outro lado da rua, as casas ficavam voltadas para este muro, depois do terreno da esquina, vinha uma velha oficina, e logo em seguida as casas bonitas e ricas da rua. Cada uma tinha sua beleza, ora o muro imponente, ora o jardim ou a fachada bem trabalhada. Caminhando um pouco mais da metade do quarteirão as casas passavam a ser mais simples e pequenas, onde a frente das casas, sem jardim, tinha uma janela e uma porta, que dava para a sala de visita, estas casas tinham três cômodos compridos. A gente morava na casa número 149, "a casinha".
E neste dia, ao passar por uma das casas simples estava o meu amigo José Joca, que tinha ganhado um jogo de presente. Rapidamente conversamos, pois mamãe logo que nos viu chamou. – Paulo, marche para casa! Não perca tempo! Então, disse ao amigo. – Daqui a pouco a gente se fala! Tchau! E fui correndo para casa para almoça, fazer as tarefas da escola e depois disso fomos liberados para brincar com os amigos. Corri para a casa do Zé Joca, que estava ensinando aos outros amigos a jogo Xadrez. Fiquei observando aquele jogo tão belo com suas peças pretas e brancas, “uma peça tinha o movimento assim e a outra assado”, uma forma local de falar. – Que legal! As peças bem brancas e pretas como as casas quadradas do tabuleiro, elas brilhavam muito, como o tabuleiro da figura 2 (que peguei da internet). Os meninos se aglomeravam na sala, onde estava o jogo, o barulho do plástico, os pedaços do papel de presente circundavam aquela apresentação. E chegou a minha vez. – Como eram mesmo os movimentos? Preciso ter mais atenção, pois alguns dos meninos já tinham decorado as orientações e sabiam cada detalhe. E eu ainda estava “voando”, perdi parte da aula sonhando.



Figura 2 – Tabuleiro de tamanho médio de peças plásticas brancas e pretas.

Os jogos começaram e o Zé ganhava todos, até que chegou a minha vez. Perdi minha primeira partida de xadrez, assim como todos os meninos da rua, mas muitos tentavam, mas quando perdiam, já iam embora. Não queriam ficar jogando para perder. Tinha partida que durava apenas quatro ou cinco lances, e "bum": - xeque-mate! Gritava o Zé.
Contudo, pessoalmente não me importava se estava perdendo, queria aprender. Perdi, perdi, perdi e perdi, nestes primeiros dias cheguei a perder umas vinte partidas, ou mais. E quando vinha da escola chegava em casa; era tomar banho, almoçar e estudar. Depois de fazer a lição, era hora de conversar com os amigos e brincar, dava uma passada no campo de Futebol e seguia logo para casa do Zé Joca, que sempre estava com o tabuleiro e também tinha algum adversário descabelado próximo de mais uma derrota.
Em nossa casa o papai, Sr. Manoel Batista, não dava importância ao jogo de Xadrez, para ele era mais um jogo. Ele jogava mesmo, era o Bingo, o jogo de Dominó e o jogo de Damas eram realmente importantes, devido os “matches” que enfrentava diante de uma plateia de apostadores na bodega da Vila do Canal, lá o jogo de Damas era apostado e tinha um bom público, quando o número de participantes aumentava bastante o jogo passava a ser o Dominó ou o Bingo, dependendo da ocasião. Da parte da mamãe, Dona Antonieta, o jogo também era como qualquer outro não devia atrapalhar os estudos, pois a lição da escola era sagrada. As brincadeiras vinham depois. E para meu tio, Sr. Raimundo Nonato, que de vez em quando estava lá em casa, ficou entusiasmado quando mostrei o Xadrez e expliquei as regras, mas o negócio dele era o jogo de Damas, jogo este que ele dominava como ninguém, e até participava de campeonatos e apostas. Passamos quase uma tarde discutindo as diferenças entre o jogo de Xadrez e o jogo de Damas, foi uma boa conversa. E quanto aos meus irmãos, eles aprenderam a jogar Xadrez, mas não ficavam mais que duas rodadas, e se lamentavam: – porque jogar um jogo que a gente sempre perde. – Não é?


Figura 3 – Diagrama do exemplo de uma variante do xeque-mate Pastor.


Certo dia meu amigo Zé me falou que o nome de sua abertura era ataque Pastor, pois era a preferida dele contra os novos “patos”, quando estava com as brancas: lógico! E naqueles dias o jeito era jogar contra este sistema de jogo tão eficiente. Fiquei sabendo tempos depois que estes movimentos eram oriundos da escola antiga de Xadrez, xeque-mate do pastor, que termina classicamente conforme o diagrama da figura 3, são os seguintes: 1.e3, b6; 2.Bc4, h6; 3.Qf3, Nc6; 4.Qxf7#.
Nos primeiros jogos, eu jogava os peões das torres primeiro (peões que ficam na frente das torres), depois observei que o grande Zé sempre começava com os peões do meio, e resolvi imitá-lo, também a movimentação dos cavalos se movendo tanto pela coluna da torre (isto é, movendo para os lados do tabuleiro), que era seguido pelo bispo do mesmo lado. Contudo, na abertura do jogo, meu adversário só movimentava o cavalo para o centro do tabuleiro, dificilmente movia para as bordas, somente no meio-jogo era mais comum sair para os flancos. Então, fui vendo que estes lances para o centro me faziam forte, e minhas partidas duravam, até eu cegar (dar uma peça de graça) e entregar uma valiosa peça para o inimigo sem vantagem alguma. Tudo bem pensava, eu: “vamos para outra!”
A cada dia, os amigos adeptos ao novo jogo iam reduzindo até ficarem resumidos a uns quatro ou cinco participantes mais frequentes, que compareciam todos os dias. Mas, alguns só vinham e jogavam uma ou duas partida e saiam, eles preferiam ir jogar futebol. Mas, eu ficava sempre para a próxima. E pessoalmente queria desvendar este mistério: “porque neste tal jogo de xadrez aqui na rua o Zé ganhava todas as partidas?” Depois da brincadeira a cada dia ia para casa pensando como resolver este problema. Porque ele ganhava todas? Como impedir estas derrotas? E ficava eu, pensando, antes de dormir. Sonhava com o Jogo de Xadrez, com os lances, pois não podia estudar as partidas porque não tinha tabuleiro. Tinha que usar a mente mesmo. Enquanto a gente jogava o amigo Zé contava como aprendeu jogar Xadrez na Escola Técnica Federal. E com o tempo passando, a experiência vinha a cada jogo e durante as tardes os 20x0, foram diminuindo para 14x0, 10x0, 8x0, 5x0, 3x0, 2x0, 1x0 (um jogo a tarde toda), estes placares baixos eram duros embates. E na dificuldade, nosso amigo demorava, cada vez mais para responder cada movimento, enquanto cobrava rapidez dos adversários. Até que veio a minha primeira vitória sobre o campeão da rua. Agora ele demorava, mais e mais, para responder meus movimentos, ele parava e ia atender um pedido de suas irmãs mais velhas, e também qualquer deslize era apontado por ele. Os placares passaram a ser 3x1, 4x1, 2x1, 3x2, sempre perdendo no placar total, até que vieram os placares repetidos de 1x1, igualei. Notoriamente dava para perceber que aquele ar amistoso do amigo desaparecia a cada contenda, quando os jogos começavam as preocupações surgiam. E quando os meninos ficaram sabendo que o grande Zé tinha perdido uma partida para mim, eles apareciam para “peruar”, isto é ficavam vendo o jogo de xadrez dando palpites. Nas férias minhas diversões era jogar bola, o velho futebol, resolver problemas do livro de matemática, e também passávamos um bom tempo jogando o nosso xadrez. E em torno de quase dois ano depois de aprender a jogar, consegui o meu 2x0, vitória incontestável (duas partidas difíceis jogadas durante a tarde toda). Não lembro da cara do Zé Joca naquele dia. Fui para casa vibrando, que legal! Nos jogos seguintes, chegávamos aos finais dos “matches” quase sempre empatados e as minhas vitórias eram cada vez mais frequentes. E de vez enquanto, ele começou a arranjar desculpas, dizendo que estava gripado, cansado, ocupado com as provas etc. E as minhas vitórias eram frequentes e as do Zé ficaram raras. Até que ele me contou que tinha terminado a Escola Técnica e tinha conseguido um trabalho no terminal do Mucuripe, e estava trabalhando com petróleo, próximo do porto de nossa cidade. E não teria muito tempo para nossos jogos. Assim, os matches com o grande Zé tiveram fim. Para não perder o contato com o jogo de Xadrez, fiz o meu próprio jogo de peças esculpidas em madeira a partir de cabos de vassoura. E pintei as peças com a tinta de canetas usadas. Passamos meses jogando no xadrez rústico, feito por mim. Neste tempo, o Zé e família se mudaram do bairro. E veio um novo morador da rua, que trouxe o novo jogo de peças de xadrez, mas como ele sempre perdia para mim, ele preferia jogar com os outros.
O tempo foi passando e nos meados dos anos setenta entrei para a Escola Técnica Federal do Ceará situada à Avenida 13 de Maio, também no bairro do Benfica, figura 4, lá encontrei grandes amigos e logo tive contato com a turma de xadrez e outros esportes. Esta escola era quatro quadras de minha casa e lá existia uma turma boa e envolvente que jogava xadrez com paixão, o pessoal estudava em equipe. Pessoalmente, não tinha muito tempo para estar com eles e ir aos treinos, visto que me inscrevi para trabalhar como bolsista, e para ter a bolsa eu tinha que trabalhar noutro período, mas qualquer tempo vago estava com eles discutindo e trocando conhecimentos. As ideias eram diferentes, agora existia cooperação, conjunto e harmonia, um ajudava o outro, como mosqueteiros. Então, me apresentaram alguns livros, visto que minha técnica era muito rude ainda seguindo preceitos da escola antiga do velho xadrez, como disse o velho Zé, mas mesmo assim ganhava algumas partidas no meio jogo, tudo na raça.



Figura 4 – Escola Técnica Federal do Ceará (2).

Revertendo vantagens dos adversários obtidas nas aberturas. Algumas vezes a partida estava ganha, mas não conseguia chegar ao xeque-mate. Como ganhar com dois cavalos contra o rei? Ou, mesmo como ganhar com bispo e cavalo contra o rei inimigo? Sempre tinha que aceitar o empate. Só os livros e os amigos de escola técnica para me abrirem o mundo deste magnífico e fantástico jogo de xadrez.
Nunca imaginei que existiria livro dedicado ao jogo de Xadrez, acho que em nossa rua ninguém sabia provavelmente só o Zé, contudo na Escola era amplamente divulgado. Nos jogos internos anuais a disputa era ferrenha e precisava aprender mais. Não queria ficar dependendo dos livros emprestados dos colegas do grêmio. Então, fui a uma livraria no centro de Fortaleza e vi um belo livro de xadrez, pequeno e barato, quando fui comprar o meu dinheiro não era suficiente. A funcionária da livraria educadamente devolveu o livro para a estante. Acho que foi a ansiedade de obter aquele exemplar e não contei direito o dinheiro. Observei o local que ela colocou o livro. Voltei preocupado para casa com a situação, já que os livros de xadrez da livraria poderiam ser todos vendidos até conseguir a quantia certa, visto que alguns aficionados de xadrez poderiam escolhê-lo. Pelos meus cálculos ainda faltava quase uma semana de economia, pois o dinheiro era oriundo da contribuição de minha mãe para minha merenda na escola. E tinha vergonha de pedir, e dizer como queria usar o nosso curto dinheiro. Também, tinha a esperança que o dinheiro da bolsa começasse a sair e tudo estaria resolvido. Durante as próximas noites eu sonhava com o livro “Xadrez Básico de Dr. Orfeu G. D’Agostini”. Este livro era bem difundido pelos amigos da escola, este tinha todos os itens dos fundamentos básicos de finais, aberturas e partidas de grandes mestres. Era como se fosse uma pequena enciclopédia, valendo por vários livros num só. Este eu não tinha! O dinheiro da bolsa da Escola saiu primeiro e foi possível obter o meu primeiro livro de xadrez. Neste livro, gosto das partes dos ensinamentos sobre os diversos finais e as dez regras. Alias a parte que mais me ajudava antes dos torneios eram os dez itens citados na parte: “as regras práticas nas aberturas”. Elas são conselhos simples que eram lidos e revisados diversas vezes antes a minha ida para os torneios, porque me aguçava a sensibilidade e me ajudava na tomada de decisão, principalmente, quando estava na fase de abertura do jogo ao vivo. E algum tempo depois comprei outro livro e na capa tem dois peões sob um fundo amarelo de título “Ataque e contra-ataque no Xadrez de Fred Reinfeld”, era pequeno e muito bom. Este é dividido em duas partes a visão das brancas e a visão das pretas. Isto me fazia ficar lendo e relendo, a fim de complementar os ensinamento básico de xadrez. Eles melhoraram tanto meu desempenho no jogo, na escola ia tudo bem, mas na rua não encontrava mais adversários para jogar nem meus irmãos se arriscavam a me enfrentar. O jeito era jogar na Escola Técnica e clubes da cidade, Também, participei de algumas reuniões na casa de colegas da Escola em dias feriados, onde os jogos de tabuleiro eram as estrelas como WAR e o nosso Xadrez. Nestas ocasiões tinha contato com livros em inglês, e principalmente, em espanhol. Quando tomava emprestada uma destas edições tinha a maior lisura, para devolver no prazo e sempre em bom estado. Até encadernava com jornal temporariamente. Falando em clube de Xadrez, algum tempo depois conheci o Sr. Bené no Clube de Xadrez de Fortaleza, que ministravas aulas e reuniões para treinar os associados e convidados. Sempre participei como convidado.
Por ora vamos concluir, visto que o objetivo deste artigo era apresentar como o Xadrez chegou à minha história. Em textos futuros contaremos alguns causos que abordarão o Xadrez na Escola Técnica, Universidade e no trabalho de engenharia. Agora não moro mais em Fortaleza-CE, entretanto desde aqueles tempos o Xadrez faz parte de minha vida cotidiana, assim com o meu clube de futebol do coração, “Ceará Sporting Club”, que também é preto e branco como as peças do Xadrez. E sobre os livros citados, ainda os continuo recomendando, pois para iniciantes estes livros são excelentes e fornecem uma bela base, para quem está aprendendo mesmo a jogar xadrez. E concluímos que foi assim que o xadrez entrou na casa da família dos “&Silva”.


Observação (1): A foto panorâmica da figura 1 é uma composição entre uma foto atual tirada por drone da rua onde morei. Edificações atuais foram retiradas e substituídas por árvores, com base em outras fotos da cidade de Fortaleza da época.

Observação (2): A foto da fachada da Escola Técnica da figura 4, que eu mesmo retirei recentemente, teve seu letreiro atualizado para a época que estudei nesta instituição.
 
 
Autor deste artigo: Paulo Sérgio e Silva
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