Jogando Xadrez às cegas
No jogo de xadrez existe uma
modalidade que consiste em jogar sem o tabuleiro e o jogo de peças, isto é,
jogar sem ver. Contudo sabemos que Jogar, sem tabuleiro e peças, não é algo
novo, esta modalidade é conhecida como “blindfold chess”, “sans voir” em
francês, ou, mesmo no português xadrez às cegas ou xadrez mental. Na história o
pioneiro nesta modalidade de jogar xadrez foi As’id Bin Jubair (665-714) oriundo
de Kufa, atual Iraque, país do Oriente médio. Em 1266 na cidade de Florença foi
realizado o primeiro evento conhecido de xadrez às cegas. E em 1783 o grande
jogador francês André Danican Philidor demonstrou suas habilidades do xadrez às
cegas ao jogar três partidas simultâneas com grande sucesso. Em 1858 o Grande
Mestre Paul Morphy fez uma exibição de xadrez às cegas contra oito fortíssimos enxadristas,
destas partidas ele empatou apenas duas e venceu as outras seis.
Figura 1 – Jogando xadrez
“sans voir”
No meu tempo de escola nunca
tinha ouvido nada sobre esta modalidade até que alguns amigos de tabuleiro. Num
final de tarde na escola quando estávamos jogando xadrez rápido, enquanto
alguns amigos do período noturno iam chegando mais cedo para aproveitar o tempo
para jogar algumas partidas ou discutir sobre as tarefas de casa. Na verdade
era um verdadeiro ponto de encontro, pois sempre aparecia gente que vinha para
aprender a jogar xadrez e em troca ensinava quem tivesse dúvidas nas matérias
do dia a dia. Era um ambiente descontraído e que todos buscavam se ajudar. Sabidamente
o número de tabuleiros não era suficiente, para o número de frequentadores,
normalmente, sempre alguém trazia um jogo de casa. Mas, neste dia era muita
gente para poucas mesas. Quando alguém falou vamos jogar xadrez “sans voir”! E
começou a explicar como seria, bastava pegar papel e lápis e ir chamando os
lances e anotando, caso houvesse algum lance impossível seria o bastante para determinar
o fim da partida e declarar o infrator com perdedor. Simples assim, pois o
resto era igual ao jogo convencional.
Depois disso, sempre encontrávamos
alguns companheiros sentados anotando seus lances em plena partida de xadrez
sem mesa, tabuleiro e peças. Até que veio a ideia de fazer um torneio com os oito
melhores, que jogariam partidas knockout, isto é, usando o sistema eliminatório,
perdeu saiu, até a final. Lembrando que estas atividades enxadrísticas
aconteciam numa sala emprestada adjacente pertencente ao grêmio dos alunos, que
era um grupo eleito a cada ano. Por voto direto, para promover atividades
esportivas e tratar de interesses dos alunos e da escola. Desta feita a direção
do grêmio formada por uma chapa de dez alunos, a qual eu fazia parte, dava
apoio pleno as atividades esportivas, inclusive, a atividade enxadrística.
No domingo o Grêmio da escola com
a autorização da diretoria, promovia o dia de lazer, transformava a escola num
verdadeiro clube, visto que a maioria das famílias dos alunos não tinha
dinheiro para ser sócia e frequentar os clubes da cidade. Assim, a partir das
oito horas a gente começava a abrir o portão, próximo do ginásio, para receber
as senhas e controlar a entrada de bebidas e comidas, álcool nem pensar. Dava
um trabalho controlar a turma, visto que na semana tínhamos que distribuir as
senhas e manter o controle de entra e sai durante os eventos. A música alta, a
cantina aberta para venda de refrigerantes e merendas diversas; o campo de
futebol com jogos, e também, a quadra que tinha sempre um jogo de basquete ou
voleibol, as piscinas sempre azuladas recebia uma boa frequência, assim como
nossa sala de xadrez que ficava molhada com as pegadas dos frequentadores que
saiam da piscina e iam jogar. Peças eram abandonadas no tabuleiro, resto de
comidas, copos molhados e papeis sobre as mesas. Tudo era festa. E foi nesse
ambiente que promovemos nosso primeiro torneio de xadrez às cegas ou “sans voir”
como preferir.
No dia marcado tivemos que por
ordem na casa, ou, na sala. A coordenadora da escola nos fez uma visita como
sempre. Entretanto, neste domingo em especial, veio para abrir o evento, e
sugeriu que não seria preciso usar as vendas, porque eram feias. Ficava mais
bonito se os contendores ficarem um de costa para o outro, ou lada a lado, sem
vê o tabuleiro que mostrava o andamento da posição aos espectadores. E a
sugestão foi aceita de bom grado. Antes da primeira rodada foram realizadas
algumas partidas, só para aquecer, enquanto alguns preparativos eram
realizados. Então, começou o torneio para valer. E durante os jogos, observamos
que tinha um loirinho, cabelo bem liso, chamado Claudio Reis. Que na primeira
rodada ganhou com uma virada impressionante, deixando seu oponente a ver navios,
depois que ele tinha perdido uma torre. Todos comentavam a façanha, foi inesperada
a virada. E jogou de pretas! Em meia hora dos oito jogadores da primeira rodada,
sobraram apenas quatro. A turma lá fora louca que o torneio acabasse para saber
o campeão e ficar com a sala livre. Imagine o barulho, tivemos que pedir para
reduzir o som ambiente várias vezes, e chamar a atenção os frequentadores. E na
segunda rodada o nosso amigo loirinho, ganhou por xeque-mate com uma habilidade
assombrosa. Enquanto, nesta mesma rodada entreguei a dama e resolvi abandonar,
desta forma o meu amigo William estava na final, jogaria de brancas, agora
contra o Claudio. Agora sim, a gente ia ver um bom jogo, visto que o William
era muito bom. Logo que começou a terceira rodada, vimos o Claudio fazer uma bela
abertura. Como nas rodadas anteriores, o Claudio Reis fez uma partida muito
segura. E venceu a final com muita tranquilamente. Com os acertos e a rapidez do
oponente, William ficou inseguro o começou a errar, e logo abandonou.
Fizemos o encerramento, abraços e
cumprimentos. E a gente se perguntava como foi isso, o nosso amigo Claudio Reis
nem treinava com a gente. Muito bom desempenho. E terminado o evento liberamos parte
da sala, para as brincadeiras domingueiras de costumes. Algum tempo depois, um
dos garotos veio nos procurar: - olha uma coisa. E fomos vê o que era. Na sala tinha
uma posição que dava para vê o vidro acima da janela refletir o tabuleiro, de
forma que com um pequeno ajuste na posição da cadeira à esquerda, o jogador
tinha uma visão privilegiada da armação do tabuleiro. Eita! Que fraude! Vamos
buscar o Claudio Reis, para explicações! Não adiantou, aquele “caboclo” tinha
ido embora. Por um momento ficamos aborrecidos, mas quando fomos para a sala do
grêmio, a fim de discutir o ocorrido. Encontramos a medalha do primeiro lugar
sobre a mesa, que coisa. E rimos da troça que o loirinho fez com o nosso
torneio. Realmente, não tinha nada que fazer. O jeito é rir. No outro dia
envergonhado o nosso colega de escola veio se desculpar e ouvir o desabafo de
alguns descontentes, mas tudo bem!
Não encontrei a minhas anotações
destas partidas disputadas no tempo da Escola Técnica Federal do Ceará nos anos
de 1975 a 1978. Mas, ficou a lembrança de domingos festivos e da diversão entre
amigos, nunca mais tivemos torneio de xadrez às cegas.
Vídeo 1 - Magnus Carlsen jogando uma simultânea às cegas em Viena
Autor do texto: Paulo Sérgio e Silva
\PSS
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