História de um jogo de xadrez amistoso

Nos dias de Universidade a vida era corrida, naquele tempo tinha dia que era cheio de aula. Eu tinha aula disso e daquilo, porque o Curso de Engenharia Elétrica era muito duro. Entretanto, ainda tinha que arranjar tempo para as reuniões do Centro Acadêmico (nesta entidade eu era responsável pelo esporte da engenharia) e as reuniões sobre política. Contudo, vamos nos ater apenas às atividades acadêmicas e esportivas, e deixar de lado das atividades políticas, isso é outra história. Foi uma época difícil para o Brasil, dias de Ditadura. Bem, mesmo com este corre-corre a gente encontrava um tempo para passar pela cantina do Centro de Tecnologia, a fim de encontrar os amigos nos intervalos, conversar, discutir sobre alguma matéria escolar e beber uma cajuína (1). Também, além destas atividades tinha as minhas participações nos campeonatos de xadrez universitário. Até para o xadrez o tempo era curto. Sem tempo abandonei minhas idas ao Clube de Xadrez de Fortaleza e passei a jogar xadrez presencial na Universidade e por correspondência.


Figura 1 - Velho jogo de peças e as anotações do tempo de Universidade

Algumas vezes levava o jogo de xadrez para a Universidade, para na hora do almoço jogar umas partidas amistosas no subsolo do Restaurante Universitário. Numa destas manhãs fiz uma incursão acompanhado do meu xadrez pelo Campus Universitário antes das aulas, fomos jogar algumas partidas próximo da cantina, quando apareceu o Sr. Luciano, funcionário da Universidade que pediu para entrar na fila e jogar umas partidas. Fiquei sabendo que neste dia ele estava de folga pelo resto do dia. Esperou um pouco. Mas, quando chegou a vez dele jogar, alguém informou que o professor já estava na sala de aula. Pena! Infelizmente, tivemos que guardar o jogo e correr para a classe. Quando estou saindo em direção a sala disse para o Sr. Luciano, meio de brincadeira, estou de brancas e meu lance inicial é Peão na quarta do Rei, 1.e4, ainda ouvi o amigo responder dizendo que o lance dele era Peão da Dama na quarta (2), 1. ... c5. Quando sabia que alguém jogava xadres, de vez enquando eu brincava citando um lance, para a pessoa, como se fosse um cumprimento ou coisa parecida. Era apenas brincadeira.

Nestes primeiros lances da partida amistosa faremos referência à Anotação Descritiva conforme as pessoas falavam, mesmo assim seguiremos a anotação recomendada atualmente, a algébrica.

Voltando ao nosso dia especial. Acho que a aula era de Eletrônica ou Mecânica dos Fluidos, não lembro bem, mas era imperdível. Mas, fiquei com a impressão que tinha começado uma partida de xadrez, e ela estava aberta.
Dois dias depois. Quando estava indo à cantina passei pelo Sr. Luciano que perguntou: – Qual o segundo lance?
Sorri e retruquei: – que lance?
Sr. Luciano disse: – até fiz as anotações.
Parei e fiquei pensando, e voltei e disse: – Está bem! Cavalo na terceira do Bispo do Rei, 2. Cf3.
No dia seguinte, o Sr. Luciano me informou a resposta: – Peão na terceira do Rei, 2... e6.
Nos dias que se seguiram. Algumas vezes eu passava uns dois ou três dias sem responder ou parar na administração da biblioteca. Então o Sr. Luciano me chamou para concluir o jogo, mas informei que não tinha tempo.
Desta forma, o Sr. Luciano disse: - passa na administração, pois coloquei no papel um resumo das regras do nosso jogo amistoso.

Na oportunidade da entrega das anotações, selamos o acordo com aperto de mão.
Depois fiz a leitura rápida do texto que além do local de anotação dos lances, tinha algumas regras, que eram mais ou menos assim:
a) Três dias por lance, se perder o prazo perde a partida.
b) Se for necessário usar anotação, esta deve ser clara. Sempre anotar data e hora e minutos da entrega junto do lance. 
c) Deixar na administração dentro de um envelope ou papel dobrado com grampo.
d) Se for folgar tem que avisar. Limite 30 dias. Pode deixar um bilhete na administração.
e) Em caso de acordo. O jogo a qualquer momento pode ser concluído usando o tabuleiro completo.

Regras simples, que serviram para dar um norte à nossa recente disputa.
Por duas vezes quase perdi a partida por questão de horas. Uma das vezes eu tinha um trabalho para entregar e passei uns dois dias sem informar o meu lance. No terceiro dia fiz minha apresentação, mas antes de chegar a minha vez, eu ainda tinha que esperar as outras equipes se apresentarem. Foi por pouco. Depois da minha apresentação sai correndo para deixar o meu lance no local combinado. Noutra ocasião, estava cheio de tarefas e esqueci meu compromisso enxadrístico. Quando estava no ônibus voltando para casa, senti no meu bolso um papel. – Que é isso! Esqueci de informar meu lance. Vou perder... Pensei e resolvi descer do ônibus e voltar para o Campus do Pici. Consegui uma carona de volta e cheguei à administração um pouco antes da hora final. Quase!
Até que resolvemos de comum acordo concluir nossa partida de xadrez, conforme o item (e) da regra elaborada pelo Sr. Luciano.

Marcamos um sábado à tarde, para concluir o jogo. O local escolhido foi o prédio da Reitoria da UniversidadeFederal do Ceará. Um pouco antes da hora marcada sai de casa e fui caminhando até a Reitoria, chegando lá encontrei o funcionário a minha espera no jardim do prédio, e não estava só. Ele tinha trazido a sua pequena filha, que devia ter uns cinco anos. E fomos conversando enquanto procurávamos um local para o jogo, o prédio é grande e tem uma varanda bem ventilada. Até que um dos seguranças da casa veio e conversou com o Sr. Luciano e apontou um local tranqüilo para a gente jogar nossa partida de xadrez, isto é, concluir nossa partida que já estava no trigésimo primeiro lance. Sentamos no chão mesmo e armamos o jogo, não tinha relógio apenas o acordo de cavalheiros dava sustentação ao andamento da partida. Enquando a sua pequena filha coloria alguas folhas com lápis de cor e cera.

No final ganhei a partida, conforme mostra abaixo, e o Sr. Luciano queria revanche. Ofereceu-me bolachas e água que tinha levado na bolsa de sua filha. Então, depois desta pausa, concordei em jogar mais uma vez. Agora sem anotar, jogamos duas outras partidas, a partida que se seguiu terminou com um empate. E na última, nosso amigo cometeu um erro grave na abertura e ganhei com facilidade. Depois da última contenda não jogamos mais, contudo ficou apenas a história da partida que começou uns dois meses antes da conclusão final. E a amizade daqueles dias de Universidade.



Diagrama 1 - Análise da partida realizada no site "chess.com"


Os rascunhos de algumas anotações de jogos dequeles dias foram guardados até hoje, 22/09/2018, junto ao velho jogo de peças dentro de uma caixa de madeira. Peças estas que fizeram parte dos jogos com o velho amigo da administração. Tive um pouco de trabalho para compor parte da partida, que no quinto lance tinha a posição na anotação Forsyth, então sabendo que tinha sido uma siciliana aberta fiz a composição dos lances em pesquisa no site "chess.com" sobre esta posição. Também, o lance vigésimo quinto, o lance não estava legível, assim adotamos como sendo h4, que aparece como um erro, mas este não compromete a sequência original das anotações, possivelmente, tenha sido isto mesmo. 

Observação (1): cajuína é uma bebida não alcoólica da fruta do cajueiro tradicional do Nordeste brasileiro.


Observação (2): nos anos setenta e início dos anos oitenta a Anotação Descritiva era muito usada, visto que nos torneios era possível escolher qualquer anotação para preencher a sumula do jogo. A anotação recomendada pela FIDE é a Anotação Algébrica.

Autor: Paulo Sérgio e Silva
\PSS



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