Xadrez – O menino que gostava de bater
No fim de tarde
os meninos chegavam da escola, e logo atiravam o material em um canto e os sapatos iam parar no outro lado do quarto. Rapidamente, estavam de calção e camiseta surrada, prontos para jogar. A mãe perguntava como foi na escola algumas
palavras eram devolvidas, apenas balbuciadas. E ela insistia, – Come qualquer
coisa; espera uma pouco. Mas, os jovens
ganhavam a rua e se dirigiam ao campinho de areia próximo de casa. Outro vinha
com a bola. Lógico que o dono da bola tem que jogar. O campo tinha uma areia
fina e preta, ao redor ficavam algumas mangueiras. Árvores de copa encorpada
pela folhagem verde-escuro. No terreno demarcado por quatro estacas, que
ficavam nos cantos do retângulo e em dois lados opostos eram armadas as traves,
compostas de três pedaços de madeira. Ali seriam marcados os “goals” das
partidas. O campo era um pouco menor que um campo oficial. Existiam dias em que
o grupo demorava a se formar. E os meninos procuravam passar o tempo jogando
xadrez na calçada na rua próxima do campo. Dos jogos de tabuleiro que apareceram o xadrez foi o que imperou na rua.
Na vizinhança
veio morar um rapaz ainda jovem, que se mostrava acima do peso. Dizia que tinha
jogado nas categorias de base de um pequeno clube da capital cearense, “Calourosdo Ar Futebol Clube” um time simpático, mas que no campeonato local fazia
campanhas pífias. E por um acidente futebolístico o jovem ficou impossibilitado de praticar o
futebol profissionalmente, pelo menos por enquanto. Hoje, trabalhava em uma venda no bairro, e como novo
morador das redondezas passou a frequentar o campo de jogo. Tinha as pernas
cheias de cicatrizes, que descrevia como acidente dos campos de futebol, quando
jogava na linha; agora pelas circunstâncias um goleiro, um simples guarda-redes. Era um rapaz de
temperamento complicado. Se a bola aparecia dividida, o goleiro entrava com força, pegava a bola de qualquer jeito, mesmo que para isto tivesse que passar
por cima do adversário. E socava a bola, e coitado se tinha uma cabeça próxima. Ia
junto. Com esta força toda, logo os garotos o substituíam. Melhor um goleiro
fraco do que um goleiro brigão, que machucava até seus companheiros com suas
investidas voluntariosas. E falava muito.
Quando
perguntavam, – porque jogar assim tão forte? A resposta era sempre a mesma,
porque gosto de bater. Franco e direto. E falava das cicatrizes como troféus,
essa foi por causa de... E esta outra foi quando... Então, os outros garotos entenderam
o porquê do motivo que o levou a um acidente, impossibilitando-o de correr o
campo todo. O porquê da avaria momentânea em uma
das pernas. Então, o goleiro reserva do reserva passou a frequentar a calçada
do jogo de xadrez, visto que era requisitado apenas quando não existia nenhuma
opção. E no jogo de xadrez começou bem pelo começo. – Como esta peça se
movimenta?
Como precisava
das orientações e conselhos dos participantes, sempre se dirigia com polidez e cautela.
Por favor, aqui...? E será que alguém poderia me responder isso...? Muito
amigável, mas quando era convocado para entrar no campo de futebol se transformava num “falador”,
reclamava por tudo, gritava com o amigo e o inimigo, e ficava dono do time.
Entretanto, no xadrez a humildade era plena. Aos poucos passou a recusar as
convocações do futebol. E adotou o xadrez como o seu esporte principal, jogava diariamente por horas. E passou a ganhar de outros aprendizes, comprou um ou dois livros do
nobre jogo. Sua família o presenteou com um jogo de xadrez completo, foi uma
tia que veio de São Paulo e trouxe na bagagem este belo presente. Agora não
existia apenas um jogo de xadrez, existiam dois! E nos primeiros dias a paz
reinava como de costume. Até que algumas derrotas passaram a ser reclamadas pelo
ex-goleiro, que começou a selecionar os adversários. Pediu que organizassem um
torneio para saber quem era o melhor da rua. O pessoal da outra rua, que vinha
para jogar passou a ser rejeitado. Dizia que eles não são um dos nossos, são outros: são verdadeiros inimigos. Até
que a harmonia com o pessoal da outra rua passou a ser questionada e o ambiente de calma mudou. Escolheram
um sábado para um torneio, para saber quem seria o melhor. E o rapaz que
gostava de bater foi batido, nem chegou como vice-campeão; e tão pouco como campeão. Ficou pra trás. E ele ficou alguns dias sem aparecer.
Depois do mini-exílio. Não foi recebido
pelo pessoal do futebol, que o eliminou de qualquer possibilidade de
participação. Mas, também ele não estava em suas perfeitas condições físicas. Dizia que
tinha feito uma operação, para corrigir o problema da perna. Logo que ficasse completamente
recuperado voltaria com tudo. Infelizmente, ele teria que procurar outro campo,
para jogar. Porém, no xadrez o pessoal o recebeu tranquilamente. E alguns meses
se passaram e parecia tudo em paz, algumas vezes tinha alguma discussão. Sobre
quem tocou nesta peça e fez roque sem puder, tudo normal do jogo de xadrez. Até
que foi acertado um novo torneio, e nos preparativos para a nova competição. Passou
a existir um ar de concorrência, o clima foi ficando pesado, e resurgiram os
bate-bocas. Na véspera do evento os ânimos estavam acirrados. O ex-goleiro
desafiou o campeão da rua para uma partida amistosa, só por treino. –Tudo bem! E
bastou uma derrota, para os desentendimentos ressurgissem. O novo campeonato
foi suspenso. E alguns dias depois teve um empurra-empurra.
A competição
estava demais, e o pessoal começou a não mais frequentar o ponto da calçada
antes território do xadrez. O dono do antigo tabuleiro passou a jogar dentro de
casa, ora na casa dele, ora na casa de outro menino. Outros garotos passaram a
frequentar a outra rua, rival do brigão, e a conversa seguia em paralelo. Era o
famoso gelo. E o ex-goleiro ficou só com suas cicatrizes, jogava apenas quando
alguém aparecia, uma presa fácil por certo. Estes eram aqueles machucados ou gripados que não
podiam ir ao campo de futebol naqueles dias. O ponto ficou vazio sem
frequentadores. As casas ficavam de um lado e os degraus de um antigo portão, que foi fechado formando um grande muro. Este servia de palco para os encontros enxadrísticos até então. E nesta condição os dias passaram, semanas, meses e o ponto de xadrez na calçada
não tinha mais os jogadores, nem os perus e os nem curiosos. Todo mundo
debandou.
Como a poeira
tinha baixado na velha Rua Costa Sousa. O pessoal da outra rua resolveu convocar os jogadores de xadrez
das redondezas para um torneio. E tudo correu as mil maravilhas, até teve uma
pequena contribuição para a compra das medalhas, o evento foi bem organizado. E o pivô
da discórdia não apareceu para reclamar seu lugar ao sol. Os jogadores e
familiares estavam surpresos com a ausência. A família pequena e recatada
morava numa das casas lá no fim da rua, separadas das demais pelo grande muro de
um terreno do município, onde os meninos costumavam jogar bola. Sabiam que eles
não tinham se mudado, estavam lá. – O que houve?
O causador das discórdias
e confusões tinha sido convocado, para prestar o serviço militar. Mas, não
adiantaram os estratagemas para fugir do dever de servir à pátria amada. Diziam
que ele tinha alegado que foi operado da perna, e por esse motivo deveria ser
dispensado. – E porque não estava de volta em casa? Todo mundo sabe que no
exército, depois de alguns dias de exercícios, o recruta vem em casa e vai ao
quartel etc. Foi dito que em uma primeira campanha o nosso amigo, que gostava de
bater, aprontou uma na caserna. E estava trancafiado, recluso ao
quartel. Assim, o mistério foi desvendado.
Pouco tempo depois sua família se mudou da rua. E só vimos o sujeito, duas ou
três vezes, quando este apareceu lá pela rua para rever os velhos conhecidos. Estava
mais polido e educado. Pelo visto o exército deu um jeito naquele "cabra" que
gostava de bater...
Autor: Paulo
Sérgio e Silva
\PSS
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