Lucinha, nossa parente do sertão, e o caldim

Era um período de seca no nordeste que mexia com a economia local, porque muita gente se retirava de sua terra em busca dos grandes centros urbanos. Tem gente na família de meus pais que não conheço, que está espalhada por este sertão tão castigados. Não podemos falar de seca sem citar o comportamento dos políticos da região, que sempre tiraram proveito do povo sofrido, verdadeiro sertanejo, com suas mentiras. E que no ano das eleições veem oferecendo vantagens: bondosos donativos, bolsa ou vale-gás, gasolina, diesel, dentaduras, dezenas de tijolos; tudo, visando o voto do humilde homem da roça ou das periferias das cidades.


E o povo se comporta assim, como se fosse personagem da música de Belchior, que mostrou como a pátria populus, tão amada, é tratada como um cão.

Populus meu cão
o escravo indiferente que trabalha
e por presente tem migalhas
sobre o chão…

Primeiro foi seu pai segundo seu irmão

Terceiro agora é ele agora é ele agora é eleições

De geração, em geração, em geração...

O populus brasileiro vem de longe comendo migalhas, e olhe lá, quando tem migalhas para comer. Nos últimos anos a fome só tem aumentado. Enquanto, a economia próspera, mesmo com a lamuria dos pobres do interior, seja ele caboclo, branco ou mestiço, índio nativo ou cafuzo; ainda hoje tão desamparados. E ainda encontramos mazelas por todo Brasil, essa gente maltratada que não pode deixar o chão onde nasceu, continua tão carente de tudo, tão abandonada, contudo sobrevive e luta.


Depois desta dissertação sobre o sofrimento desta manipulada população, vamos a uma simples história que aconteceu anos atrás.

Era Fortaleza, capital do Estado do Ceará, Brasil; meados dos anos setenta. Chegamos da escola e encontramos uma visitante em nossa casa. Estava sentada entada numa cadeira de cabeça baixa, assim como seu falar. Minha mãe nos apresentou: era Lucinha, filha de um primo que vivia no interior do Estado. E como as coisas estavam ruins devido a seca, eles resolveram enviar seus filhos para a casa de familiares, para que os acolhessem durante este período de carestia.

Ela inclinou a cabeça e com um sorriso tímido nos cumprimentou, meus irmãos responderam ao cumprimento e rapidamente seguiram casa adentro. Fiquei curioso, parei por um instante. Observei que a menina estava muito magra, e tinha manchas na pele, lábios rachados, pele cinza. Eita! Pedi licença e fui ter com meus irmãos. Enquanto a mamãe, Dona Antonieta, cuidava da nossa hóspede. Os dias foram passando. E em poucas semanas a menina estava adaptada, nem parecia aquela pessoa. Costumava falar apenas o necessário, mas sempre falava da gente e da localidade de onde veio. No início era bem tímida.

No final de uma refeição, ela logo pedia: - “Tia, um caldim.” Olha que naquela época, lá em casa o almoço e o jantar sempre começava com arroz e feijão, não tinha essa de jantar mais leve, todos sentavam à mesa e começava a confusão. Comendo, e conversando sobre algo acontecido no dia, como: quem não estava na mesa, qual a arenga do dia, coisa da escola, futebol, religião etc. E estava surgindo um novo costume. Então, feito o pedido, Dona Antonieta prontamente atendia nossa visitante.

Como o normal era tomar caldo como entrada. Mamãe, nos primeiros dias serviu um prato de caldo antes do almoço, para quem quisesse, lógico. Papai, Senhor Nelzinho, até que gostou da novidade. Então, Lucinha tomava o caldo dela rapidamente, e partia para o prato principal do dia. A surpresa era que depois de comer à vontade. Parecia saciada. Esperava um pouco, e calmamente dizia: - “Tia, um caldim.”

Como o ano letivo tinha começado. A escola disse que levaria uns meses para regularizar a situação da menina. Desta forma, Lucinha ficou em casa. Ela ficou estudando com a gente em casa, quando era na hora do dever de casa, todo sentávamos à mesa. E Dona Antonieta preparava algum dever para ela e alguém ajudava tirando as dúvidas. Quando chegava a merenda, se demorar não comia nada, pois Lucinha era rápida. Também, os manos Cláudio e Ney não perdoavam alguma lerdeza. A merenda acabava rápido.

Isso gerou um clima de competição. - E sabe como é menino. Fizemos uma proposta à mamãe, quando fosse possível, poderíamos fazer um campeonato de quem comia mais. Só não ia entrar nosso irmão mais novo, Marcos, nosso Marquim, mas os maiores estavam no páreo, até a nossa irmão Regina. Mas, a competição era mesmo com os três maiores, que tramaram tudo, contra a visitante Lucinha, que não ficou sabendo de nada. Nem o papai sabia. Dias depois, Dona Antonieta nos avisou, que seria no próximo sábado. Nos preparamos para o almoço, era baião de dois, queijo, torresmos, farofa e outros acompanhamentos.

Todos à mesa, esperamos o papai chegar, ele achou estranho não ter que chamar ninguém para mesa, e todos calados. Mas, disse alguma coisa, e começamos. Acho que ele tentou puxar algum assunto, mas apenas Dona Antonieta respondeu. Todo mundo concentrado no almoço, papai terminou e voltou para o trabalho na Repartição, que ficava próximo lá de casa. Quando alguém estava acabando, mamãe perguntava se queria mais. Logo, eu e a mana não aguentamos, depois foi o Ney. O mano Cláudio resistiu um pouco mais, contudo a imbatível Lucinha estava firme, Com ar de felicidade com a fartura. Até que o mano desistiu e Lucinha ficou sozinha, então voltamos para a copa de cozinha para vê o final.

Ela terminou o prato, como sempre, parou e respirou. E disparou um: - “Tia, um caldim!” Dona Antonieta fez uma cara de espanto. E todos nós rimos e voltamos para a sala, enquanto a mamãe servia o caldinho para Lucinha. Depois ficamos nos sentindo desconfortáveis por ter comido muito, e Lucinha tranquilamente foi para o quarto.

Depois todos ficaram sabendo, sobre a competição durante o farto almoço. E nossa hóspede confessou, que ficou um pouco constrangida e resolveu encerrar o almoço por ali mesmo, quando observou que ficou sozinha à mesa. Esta brincadeira serviu para integrá-la a família. Parecia uma de nós, tínhamos as discussões e depois tudo voltava ao normal. Ficava tudo bem, como é comum entre irmãos. Ela era reservada, gostava de ficar em casa. O contato que tinha com os vizinhos era quando iam lá em casa. Nem quis aprender xadrez. Notamos que os problemas de pele sumiram, ganhou peso, as feições melhoraram. Foi matriculada, e passou a frequentar o Grupo Escolar, que ficava perto de nossa casa.

Um ano e meio depois, os familiares de Lucinha enviaram uma carta, nesta agradeciam muito a ajuda de meus pais e que em pouco tempo viriam buscar a filha. Visto que o pior já tinha passado e estava na hora deles reunirem a família novamente. E assim como veio, ela se foi, quando chegamos da escola ficamos sabendo que os familiares tinham vindo pegar a Lucinha. Não tivemos abraços, nem palavras de despedidas. Ficou apenas a lembrança do pedido. - “Tia, um caldim!”

Estava programado escrever sobre o Torneio de Candidatos 2022, que está a mil, são oito pretendentes ao direito de desafiar o Campeão Mundial de Xadrez Magnus Carsen. O torneio está sendo disputado na Espanha na cidade de Madri, período de 16 de junho a 05 de julho, no Palácio de Santoña. Quem sabe no próximo artigo, despenderei algumas linhas sobre este importante torneio. Entretanto, vou deixar um puzzel, um problema de xadrez de xeque-mate em dois lances ao Rei preto.



Olhe a posição e tente descobrir o lance das brancas, que não dá chance ao Rei preto, depois do lance chave ser executado para onde o Rei preto for ele recebe xeque-mate. Divirta-se!

Observação


1 -   Populus, relativo a povo. Possivelmente, derivada do Etrusco. Ou, oriunda do latim publicus.




Referência

1www.chess.comsite ao qual sou filiado.

2 – O puzzel tem como fonte o sistema LucasChess, treinamento, o problema de mate em dois foi composto pelo Argentino Eduardo Sadier, do livro “50000 positions of mate in two”. https://sites.google.com/site/edusadier/theartofdirectmateintwomoves

Chave do quadro acima: 1-Cc6





Autor: Paulo Sérgio e Silva

\PSS


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