Falando do sentimento de vergonha num jogo de xadrez

Não se trata de nenhum manifesto relacionado a política nacional, nem ao problemas atuais de trapaça no xadrez mundial; é apenas, uma dissertação sobre este sentimento tão individual, que existe em cada ser humano, e o xadrez não está fora dessa. Falando em xadrez, o fantástico jogo nos surpreende diante das exuberantes atuações dos contendores, principalmente os mestres, com lances difíceis de ver, onde as milhares combinações escondem verdadeiras pérolas, verdadeiros tesouros obscuros das mentes dos admiradores normais deste belo jogo. Mas, tem o outro verso da moeda, que nos traz momentos inesperados de falhas incríveis. E estas geram dentro do ser humano uma frustração, que faz brotar um sentimento de vergonha. Cria um desconforto dependendo do nível de timidez ou desenvoltura do pobre jogador.


Falar de vergonha é falar do sentimento humano resultante de algo inesperado que infligiu a regra pessoal, ou, social em seu entorno. No nosso caso vamos nos ater aos jogadores, sabendo que os torcedores, também, podem sentir um pouco desse sentimento quando o evento equivocado acontece. É dificil isolar, pois existe a vergonha alheia. Logicamente, vamos procurar não falar da vergonha causada por atos bem fora do tabuleiro, como no caso: “o menino grande batendo no pequeno. E alguém que vê; e diz: - que vergonha, você desse tamanho!” No xadrez o mestre pode receber os iniciantes e jogar com eles, não tem problema. Espera-se que neste caso o Grande Mestre vença. Não é mesmo?

Então, vamos vê mais alguns detalhes sobre o significado de vergonha. Esta palavra traz em si várias conotações, como: desonra humilhante; opróbrio, ignomínia. Também, pode ser um sentimento penoso de desonra, humilhação ou rebaixamento diante do outro. Pode estar relacionado ao sentimento de insegurança provocado pelo medo do ridículo, por escrúpulos, timidez, acanhamento. Outra manifestação da vergonha pode vir de um pudor ferido, por atitudes ou palavras de cunho obsceno, indecorosos e/ou vexatórios. Pode estar relacionada a tão somente ao sentimento gerado pela ferida da dignidade; brio, honra.

Como vemos este sentimento vem da construção do indivíduo, como pessoa. Observa-se que a vergonha tem algo de pessoal, visto que a resposta de cada um, diante de um mesmo estímulo vergonhoso, pode ser diferente conforme a formação de pessoa para pessoa; e até mesmo de lugar. Como veremos na sequência.

Uma situação interessante encontrada na Islândia referente a vergonha. Os jogadores de xadrez locais têm uma expressão, para definir quando o xeque-mate é aplicado usando um peão como carrasco: esse é chamado de “mate vergonha”. Assim, como se fosse um código, pois ao ouvir esta expressão todos já sabem como o mate foi mais ou menos executado. E quanto a vergonha, propriamente dita, só será manifesta se houver alguma incomodação por parte do perdedor, relativa a importância dada ao tipo de xeque-mate sofrido. Sabemos que em outros lugares perder desta forma não tem grande valia; se perdeu, perdeu. Eis a questão. No mundo do xadrez existem outras expressões, aqui no Brasil as comuns, usadas como um certo tom brincadeira: chamar o jogador fraco ou iniciante de “capivara”; e as pessoas que ficam dando palpite no jogo são chamadas de “peru”. Contudo, como dito antes a vergonha só surge se o indivíduo chamado, receber isso como uma das formas, enquadradas anteriormente: rebaixamento, desonra etc. Se levar na esportiva, como se diz, não tem problema.

Agora quando o ato de falha gritante sai de suas mãos, por uma desatenção momentânea, e faz doer na alma. É duro de engolir. Quando aconteceu comigo, no torneio Norte-Nordeste pela semifinal do Campeonato Brasileiro de 2019, fiquei desorientado, não sabia se levantava ou ficava olhando a posição no tabuleiro. Vi que a minha falta de descanso, culminou com uma desatenção gigantesca. Ainda bem, que foi na última rodada, pois acho que não teria como enfrentar outra rodada depois dessa. Quanta vergonha, entregar o jogo desta maneira. No voo de volta para Natal, ainda estava remoendo o acontecido. - Como pude entregar a Dama desta forma? Isso ficava batendo em minha mente. O fato ocorreu. Então, resta esquecer, visto que outros jogos deverão se enfrentados, e as magoas devem ser deixadas pelo caminho. É certo que outros equívocos acontecerão. E deverão ser digeridos rapidamente! É o melhor a ser feito, para minimizar a dor, a vergonha, a preocupação sobre o que os outros vão pensar, tudo isso deve ser deixado de lado.

Na disputa do Campeonato Mundial de 2021, quando o desafiante russo GM Nepomniachtchi cometeu uma falha grave na nona partida do match. Naquele momento o Grande Mestre russo tinha perdido duas partidas no match, o sentimento era que tinha que vencer. E começou com tudo, jogando para ganhar esta partida e manter a chama acesa. Jogando de brancas ele devia jogar para vencer a todo custo. Mas, depois que o GM Magnus Carlsen fez sua jogada de pretas no vigésimo sexto lance, atacando o peão banco, deixando o jogo tecnicamente empatado. Era esperado que o Grande Mestre russo retirasse seu Bispo de uma posição insegura, ou, fizesse um contra-ataque ameaçando o cavalo preto. Mas, não fez nem uma coisa nem outra; simplesmente moveu o peão atacado deixando o Bispo banco a merce das forças pretas. Assim, o Bispo foi bloqueado e foi retirado do tabuleiro no trigésimo primeiro movimento do time preto. Fruto do movimento feito no vigésimo sétimo lance o russo perdeu uma peça inteira. Contudo, o condutor das brancas ao mover o peão e bater acionando o relógio, todos virão perplexos a falha. Diversos comentaristas gritaram surpreendidos com a falha, e também os telespectadores (via internet) em todo mundo, todos devem ter sentido a dureza do golpe. Enquanto, o desafiante levantava rapidamente e saia do foco das câmeras. E foi para a sala VIP, para colocar em ordem as emoções e pensamentos no lugar. Pessoalmente, estava torcendo pelo GM norueguês, mesmo assim senti dó do Grande Mestre Nepo. Foram mais de meia hora, com a câmera da mesa de jogo focando apenas o jogador das pretas solitário no tabuleiro, esperando o desafiante, a fim de dar sequência ao jogo. Todos lamentavam a infelicidade do surgimento deste deslise num jogo tão equilibrado, e o desenvolvimento da partida até então mostrava uma recuperação de confiança por parte do GM russo. Quando retornou a mesa trouxe uma linha de jogo, que não salvou a peça, mas mostrou um esperneio bem elaborado do condutor das peças brancas. E o esperado aconteceu alguns movimentos depois; no trigésimo primeiro lance o GM russo Nepomniachtchi abandou a partida.

Depois disso até o adversário e todos os torcedores contrários ficaram contidos diante da vitória repentina do campeão, devido a forma como aconteceu. E o sentimento de perda foi tão grande, com um certo toque de vergonha, na minha opinião, o qual influenciou totalmente o GM russo na sequência do match. O fato é que o match durou apenas duas partidas depois. Ao final da décima primeira partida o match teve seu desfeche final, mais uma derrota do GM russo. Assim, o GM Ian Nepomniachtchi ficou com o vice por ter feito 3,5 pontos, enquanto o GM Magnus Carlsen foi o Campeão Mundial com 7,5 pontos.

E o xadrez nos faz brincar com nossa capacidade de calcular diante de milhares de posições possíveis, indo ao limite. E acompanhamos os jovens jogadores cada vez mais chegarem a quase perfeição, entretanto são humanos; um dia acontece uma distração, e o cálculo dos próximos lances falha, mesmo que este seja um lance tão óbvio, claro como as águas de um rio pedregoso. De certo modo, a vergonha não está na transgressão, mas na forma como você e outros recebem esta frustração.

Poderia listar muito outros exemplos, contudo acredito que os citados dão uma boa ideia do turbilhão de sentimentos controlados pelo jogador, para dar cabo de uma boa contenda. A solução é concentração, bom preparo, seguir as regras e atender seus limites, para evitar situação vejatórias. Assim, deixemos a vergonha dos tropeços de lado, pois o campeonato continua; a vida continua. Bola para frente e vamos realizar mais.

Referência

(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Campeonato_Mundial_de_Xadrez_de_2021

(2) https://www.chess.com

Bibliografia

-   Autor: Holanda Ferreira, Aurélio Buarque. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa; Editora Nova Fronteira S/A, 1988, Rio de Janeiro-RJ.

-   Autor: Horton, J. Byrne. Moderno Dicionário de Xadrez (Dictionary Of Modern Chess); IBRASA – Intituição Brasileira de Difusão Cultural S/A, 1973, São Paulo-SP.


Autor: Paulo Sérgio e Silva

\PSS





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